Xadrez se aproxima dos e-sports, conquista novos mercados online e luta
contra o “doping virtual”
Esporte se adapta durante a pandemia e abre
possibilidade para profissionais enfrentarem os tops mundiais e amadores
investirem em canais que abordam o jogo como entretenimento
Isolados pela pandemia, os amadores buscaram uma distração. Os profissionais também se conectaram. E, assim, o xadrez online cresceu exponencialmente e transformou o mercado do esporte em 2020.
Grandes Mestres se tornaram gamers de algumas das maiores empresas de
e-sports do mundo, youtubers ganharam holofotes, e um brasileiro
teve a oportunidade de enfrentar – e vencer! – o número 1 do mundo.
Tudo isso
em meio à popularização das plataformas de jogos e à busca incessante das
mesmas de combate ao chamado “doping virtual” para aumentar a confiabilidade e
a credibilidade de eventos com altas premiações.
Hikaru Nakamura, número 1 do mundo em blitz, foi contratado pela TSM Foto: Divulgação / TSM |
O último
grande evento de xadrez da temporada foi interrompido no meio. O Torneio de
Candidatos, que define o desafiante do então campeão mundial, estava sendo
realizado em Ekaterimburgo, na Rússia, em março, quando a Federação
Internacional de Xadrez (Fide) decidiu suspendê-lo em meio ao fechamento de
fronteiras como medidas de contenção ao novo coronavírus.
Sem
perspectivas de retomar as partidas presenciais, a solução foi se render ao
digital. O site Chess.com, um dos maiores no ramo, registrou até o fim de
novembro cerca de 13 milhões de novos usuários no ano, um aumento muito acima
do habitual. As transmissões, com direito a narração e comentários, se
multiplicaram nas plataformas de streaming, e os números de visualizações
atraíram a atenção das empresas de e-sports.
Em maio o americano Hikaru Nakamura, número 1 do mundo no ranking de blitz, modalidade rápida do xadrez, começou a receber sondagens diante do sucesso de suas transmissões no Twich.
E, em agosto, foi anunciado pela gigante TSM.
- Outros enxadristas também foram abordados. Isso é um grande sinal. Adoraria ver mais organizações envolvidas e criando uma liga de e-sports muito séria, com times de Grandes Mestres que jogam online numa atmosfera como a de League (of Legends) ou Valorant – disse o americano ao ge.
Nakamura vê o online como uma porta única de conexão entre os maiores nomes do esporte e os fãs, com a oportunidade de responder a dúvidas e compartilhar o raciocínio por trás de cada movimentação no tabuleiro. Ele sabe que a postura não agrada ao mais “puristas”, jogadores mais tradicionais. Mas os ignora em prol do crescimento do esporte.
- Há críticos que dizem que só estou fazendo isso
por dinheiro, que estou arruinando o xadrez clássico tornando a blitz tão
popular. Eu ignoro a maioria. Há quem diga que esses fãs não pertencem ao
xadrez porque eram gamers primeiro. Essa toxicidade é ruim para todos os
jogadores de xadrez. Preciso não responder diretamente, mas liderar pelo
exemplo.
Raffael Santos levou o hobby a outros fãs do xadrez através do Youtube Foto: Arquivo pessoal |
Raffael
Santos trabalha com manutenção eletrônica e tinha o xadrez como hobby quando
decidiu criar o canal Raffael Chess, há dois anos. Hoje ele é um dos principais
do Brasil, com quase 17 milhões de visualizações e com um fluxo crescente mês a
mês.
- O
pessoal busca muito essa função de entretenimento e aprendizado. (...) Não
gosto do termo aula, gosto que seja natural. Vou mostrando as ideias, a gente
vai se divertindo, como se eu fosse um amigo, e não um professor. (...) Nessa
crescente do xadrez tentei acompanhar essa demanda com conteúdo, e as pessoas
estão consumindo muito. Se eu colocasse o dobro de vídeos as pessoas
continuariam assistindo. O xadrez ainda está florescendo.
Um quarto
de toda a audiência do canal de Raffael foi conquistada apenas no último mês de
existência, mostrando a potência do crescimento recente. Hoje ele dedica cerca
de 3h por dia às gravações e edições, com a esposa cuidando de toda a parte
gráfica. Atualmente o conteúdo é focado mais em partidas para quem já joga
xadrez há algum tempo, mas ele pensa em alcançar também o público totalmente
leigo.
- Tem muita gente produzindo conteúdo e o pessoal continua vindo. Está acabando esse preconceito de que é um jogo parado. Com os streamers e youtubers (as pessoas) estão descobrindo que é um jogo muito ativo e interessante e estão querendo jogar. Com acesso à internet é fácil ter acesso a esse conhecimento, e sempre tem alguém com quem você possa jogar.
O número 1 a um clique de distância
Em
circunstâncias normais, os melhores jogadores do mundo são pouco acessíveis.
Jogam torneios fechados, restritos a convidados, que são sempre os melhores
colocados no ranking mundial – a título de referência, o melhor brasileiro na
lista é Rafael Leitão, em 280º lugar.
Luis
Paulo Supi, número 2 do Brasil e 345º do mundo, é considerado o mais promissor
atleta brasileiro da atualidade. Em um dia de maio estava triste pela morte de
seu cachorro de estimação e resolveu entrar num site de jogos para se distrair.
Viu uma sala com um número alto de pessoas acompanhando e decidiu entrar. Leu
comentários de que um dos jogadores em ação era ninguém menos do Magnus
Carlsen, campeão mundial.
Uma vez na sala, Supi apareceu como dono do melhor índice da Fide entre os presentes. E foi desafiado pelo norueguês. Conseguiu surpreendê-lo e superá-lo. Concentrado no tabuleiro na tela, o brasileiro não sabia que o adversário estava transmitindo a partida em uma rede social. E só depois, quando recebeu uma avalanche de mensagens, soube da reação do rival ao perceber a derrota.
- Geralmente ele fica meio bravo e não fica elogiando a pessoa, então imaginei que a reação dele não seria boa. Mas chegaram várias mensagens me contando e realmente fiquei bem surpreso. Fiquei mais feliz depois, ao saber da reação dele, do que na hora em que ganhei. Foi bem bacana.
Mas nem
sempre os jogadores tops recebem bem a derrota para outro profissional de
ranking mais baixo. Supi conheceu o outro lado da moeda logo depois da vitória
sobre Carlsen. Enfrentou e venceu Ian Nepomniachtchi, número 4 do mundo. O
russo, mau perdedor, insinuou que o brasileiro poderia ter trapaceado.
Luis Paulo Supi, Grande Mestre de xadrez Foto: Diego Rocha |
No chat da plataforma, Nepomniachtchi escreveu: “O nível de jogo de Supi varia bastante. Às vezes parece um amador e em outros momentos joga como um stockfish”, termo que se refere a quem usa softwares que calculam as possibilidades de movimentação e orientam na tomada de decisões.
- Quando
você acompanha a carreira do cara e descobre que ele tem esse pensamento a seu
respeito não é algo positivo. No dia seguinte ele me desafiou para jogar outra
vez, e eu recusei. Depois no privado ele me pediu desculpas, disse que estava
estressado porque já estava perdendo algumas partidas. Acontecer isso com uma
pessoa que você admira acaba sendo bem desagradável – lamentou Supi.
O combate ao “doping virtual”
Proteger os jogadores profissionais de interferências externas é um dos grandes desafios para consolidar a popularidade do xadrez virtual com confiabilidade que permita a realização de grandes eventos. Isso porque há diferentes formas de trapacear jogando com auxílio da computação.
- Diferentemente de um esporte físico, o xadrez é um dos únicos esportes que, com ajuda de uma trapaça qualquer, um iniciante consegue ganhar de um campeão mundial. No tênis, por exemplo, você pode ter todo o doping do mundo que um iniciante nunca vai ganhar do (Roger) Federer.
- No
xadrez há aplicativos grátis e de fácil acesso. É gritante – disse o Grande
Mestre brasileiro Krikor Mekhitarian, Diretor de Conteúdo em português do site
Chess.com e agora também jogador da equipe Fúria.
Krikor
afirma que as principais plataformas de jogos estão investindo pesado em
segurança. Usam algoritmos e modelos estatísticos que identificam padrões
comuns a quem está tentando fraudar o sistema, o que permite um banimento
automático de mais de 70% das contas suspeitas.
Grande Mestre Krikor Mekhitarian é Diretor de Conteúdo do Chess.com em português Foto: Reprodução |
Quando se trata de um jogador profissional a investigação é mais delicada e envolve outro tipo de análise. E, nos torneios, cada vez mais há a obrigatoriedade do uso de webcam e do compartilhamento de tela, para que fique claro que o jogador está dedicado exclusivamente ao jogo, sem nenhum outro tipo de auxílio.
- Para o
dia a dia não é viável, mas para eventos maiores temos essa segurança. A
trapaça é um dos principais vilões do xadrez online, porque isso afasta as pessoas.
O jogador desanima, não quer jogar contra uma máquina. Não tem graça. Temos
melhorado bastante nisso. É o grande desafio hoje – disse Krikor.
Aos
poucos o online vai se consolidando. Em termos de premiações, já é atraente o
bastante. Nos meses de isolamento social Carlsen e o Chess.com organizaram um
circuito com alguns dos mais renomados atletas a nível mundial. O evento
distribuiu US$ 1 milhão, mais de R$ 5 milhões na cotação atual.
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