De Virginia Closed ao exílio na Espanha - Aleksey Bashtavenko

 

De Virginia Closed ao exílio na Espanha

Escrito por Aleksey Bashtavenko – Traduzido por Thais Martins




 

“Se deixou levar por sua convicção de que os seres humanos não nascem para sempre no dia em que as mães os dão à luz, e sim que a vida os obriga outra vez, e, muitas vezes, a darem a luz a si mesmos.” – Gabriel García Marquez

 

             Quando apareci no torneio estadual Virginia “Closed” com 741 de classificação, fui ao encontro do meu batismo em fogo. No meu primeiro torneio, já adulto, eu não me aguentava de tanta ansiedade. Eu ofereci um empate nas duas primeiras rodadas, apesar de estar em posição vitoriosa em ambos os casos.

             Ao longo dos anos seguintes, eu avançaria em muitas classificações e jogaria na Liga por Equipes da Virgínia do Norte, na qual eu terminaria em segundo lugar. Ainda assim, eu virei às costas pra tudo: já havia crescido cansado da rotina semanal de torneios e prática constante. Eu estava pronto para um novo capítulo da minha história de vida. Em vez de sonhar com a reinvenção, eu mesmo tomei uma atitude: saí, de vez, dos Estados Unidos.

             Numa tarde muito quente de setembro, já na Cidade do México, eu olhei para o lado de fora da Torre Latino-americana – um dos edifícios mais altos do mundo latino – e fiquei maravilhado ao ver o tamanho da capital da nação! Mas, também, pude notar a impenetrável nuvem de fumaça que cobria o horizonte.

            

           

 

 Enquanto eu esperava a minha comida, mal podia prever o resultado horrível que eu teria...


Mauricio Rodriguez - Aleksey Bashtavenko 
México - Copa Independência 2019

Defesa Indiana do Rei

 

1 d4 Nf6 2 c4 g6 3 Nc3 Bg7 4 e4 d6 5 Nf3 O-O 6 Be2 e5 7 O-O Nc6 8 d5 Ne7

9 Ne1 Nd7 10 Be3 f5 11 f3 f4 12 Bf2 g5 13 Nd3 a5 14 Rc1 b6 15 b3 h5 16 a3

Nf6 17 b4 axb4 18 axb4 Ng6 19 c5 bxc5 20 bxc5 g4 21 Nb5 Bd7 22 c6 Bc8 23 Ra1 Rxa1 24 Qxa1 h4 25 Qa7 g3 26 Be1 h3 27 Qxc7 Qxc7? [Oportunidade perdida: 27...hxg2 28 Kxg2 Nxd5! Si 29 Qxd8 O rei branco foi atraído para dentro da área de alcance do cavalo—29...Ne3+. Então, branco come cavalo, 29 exd5, mas agora o caminho está aberto para o 29...Qh4] 28 Nxc7 gxh2+ 29 Kxh2 Nh5 30 gxh3 1-0

 

Perder minha abertura favorita (a variante clássica da Defesa Indiana do Rei) me resultou em quatro vitórias e três derrotas ao final do penúltimo dia do evento. Eu quase não dormi à noite já que havia ficado doente, e piorava a cada minuto.

             Com certeza, isso era muito mais que um simples resfriado. Na manhã seguinte, eu cheguei ao torneio com 45 minutos de atraso, tossindo e espirrando sem parar. Esse jogo foi outro desastre e eu desisti antes do movimento 20, porque caí em um “Garfo de Cavalo”. Na rodada final, minha tosse estava tão forte que o diretor do torneio me deu uma máscara para usar (e ainda nem se falava em corona vírus!).

            

 


 

 Aleksey Bashtavenko – Alvaro Samiento
México – Copa de Independência 2019
Ragozín

 

1 d4 Nf6 2 c4 e6 3 Nc3 Bb4 4 Qc2 d5 5 Nf3O-O 6 a3 Bxc3+ 7 Qxc3 dxc4 8 Qxc4 b6 9 Bg5 Ba6 10 Qa2 Nbd7 11 Rc1 c5 12 g3 h6 13 Bxf6 Qxf6 14 b4 cxd4 15 Bg2 d3 16 exd3 Bxd3 17 Qd2 Ba6 18 Qd4 Rac8 19 Qh4? Rxc1+ 20 Kd2 Qc3 mate 0-1

            O que aconteceu, então? Até o penúltimo dia, eu ganhei todas as rodadas noturnas. Porém, nas rodadas matutinas, eu chegava tarde, dormia demais... Enfim! Estranhamente perdi três de meus quatro jogos com brancas, mas ganhei três de quatro jogos com pretas. Antes de sair da Virgínia, aproximadamente um em cada quatro dos meus jogos terminou em empate e posso dizer que, raras vezes, estive em um evento no qual perdi vários jogos com as brancas.

             A grande verdade é que não importam quais desculpas sejam dadas para uma má atuação... São todas esfarrapadas! O importante é que minha mente havia mudado: eu já não tinha mais nenhum interesse em empatar. A pergunta é: essa mudança foi mera coincidência ou o ambiente do local começou a surtir efeito sobre mim?


       O GÊNERO DO REALISMO MÁGICO foi desenvolvido na América Latina e não é mera coincidência que o México era o país favorito do autor Gabriel García Márquez. O realismo mágico é um conceito excessivamente estranho para os norte-americanos e europeus ocidentais, e qualquer definição que alguém possa dar, a um conceito tão incompreensível, seria incompleta. No entanto, um resumo bem simples de sua definição poderia ser compreendido como: um gênero literário que traz experiências humanas normais com elementos de fantasia que se intercalam à realidade. Em um dos romances de Gabriel García Márquez, um ditador governou um país por tantos anos que ninguém se lembrava de como era a vida antes do terror começar. Em outro, o patriarca morreu e as flores começaram a cair do céu, como se a própria mãe-natureza chorasse sua morte. A obra mais famosa de Márquez, “Cem anos de solidão”, está ambientada em um povoado tão remoto que só uns poucos ciganos podiam entrar e sair da comunidade.

 “Bem-vindo ao México, amigo – a terra da magia”, explicou o bom-samaritano enquanto me contava histórias tão fantasiosamente bizarras que me pareciam impossíveis de se acreditar.

Com brilho nos olhos continuou: “estamos tão longe de Deus, mas tão perto dos Estados Unidos!”, e ria ironicamente. “Acreditamos na magia, mas não na educação!”, e se cansou visivelmente das minhas incansáveis perguntas e, eu nem preciso dizer que eu saí dessa conversa mais perplexo do que eu entrei.

Ainda que a morte de absolutamente ninguém seja seguida de uma tempestade de flores, ficção e realidade, de fato, caminham lado a lado em grande parte da América Latina. A magia é a fusão do banal com o surreal. “Pásale, pásale! Tacos de perro!”- (que, traduzido literalmente, seria: “andem, andem! Tacos de carne de cachorro!”), berrava o empreendedor ao dar passagem aos clientes desavisados, que pensavam que ele estava brincando. O problema é que a “brincadeira” não se tratava do prato típico, e sim dos clientes, como se estivessem sendo chamados de “cachorros”; por causa disso, os consumidores o processaram judicialmente e, para tristeza geral, o juizado absolveu o empreendedor porque ele jurou de pés juntos que só estava falando do prato.

Enquanto eu seguia procurando detalhes que pudessem explicar meu péssimo desempenho apenas algumas semanas antes, me lembrei de uma barraca de tacos perto da estação do metrô na Cidade do México, onde cinco tacos custavam 15 pesos (algo como 0.61 € ou R$ 4,00). Claramente a carne de cachorro estava longe de ser o pior que eu poderia haver comido ali.

        No caminho de volta para minha casa em Puerto Vallarta, fui ao médico me queixando: “minha garganta tá vermelha como a bandeira da China!”, e o médico nem se surpreendeu ao saber que eu havia estado em Cidade do México. Rapidamente fui diagnosticado com faringite estreptocócica. Ele me receitou uma bateria de remédios que se pode comprar sem receita e antibióticos. Surpreendentemente a consulta custou só 70 pesos (algo como 2.84 € ou R$ 19,00), menos de 10% do que gastei em medicamentos similares, há meses passados, quando ainda não falava espanhol...

Duas semanas depois da minha atuação medíocre na Cidade do México, continuei vagando pelo famoso “malecón” (calçadão), desfrutando do pôr-do-sol sobre o Oceano Pacífico enquanto admirava a vibrante vida noturna. Tudo parecia estar bem de novo, no entanto, não sei... Faltava algo! Eu não podia estar plenamente satisfeito jogando com um exibicionista bobalhão na praia, que se fazia passar por um homem de areia; nem jogar contra o “artista” de rua que queria 20 pesos (algo como 0.81 € ou R$ 5,32) para sua passagem de ônibus e uma Coca-Cola Light. Certamente, não estava a fim de voltar pra Cidade do México, nem estava disposto a viajar pra Guadalajara, que se tornava mais perigosa a cada dia.

Refleti sobre o momento em que voltei para o meu quarto de hotel na penúltima noite do torneio e liguei a TV para contemplar a celebração do Dia da Independência do México. O presidente Andrés Manuel López Obrador apareceu em Plaza del Zócalo a poucas quadras de onde o torneio foi realizado. A multidão que o ovacionava, o aplaudia, dizendo: “você não está sozinho!”, porque ele havia prometido lutar contra a pobreza e a corrupção, junto com uma lista enorme de promessas impossíveis de serem cumpridas.

Ainda que os partidários de Obrador fossem treinados na arte de esperar o inesperado, e, nem sequer uma imersão de vida no realismo mágico poderia prepará-los para o futuro precário que viria adiante... menos de dois meses depois, o chefe de Estado exclamou: “abraços e não balaços!”, quando falava de uma tentativa frustrada de prender um destacado líder de um cartel. No melhor dos cenários, o presidente refletiu a ingenuidade do Major do livro “A Revolução dos Bichos”, e seus índices de aprovação sofreram uma queda catastrófica.

Em meados de novembro de 2019, os agentes federais prenderam o filho de El Chapo, Ovídio Guzmán. Pouco depois de o criminoso ser posto em prisão domiciliar em Culiacán, o cartel de Sinaloa lançou uma operação de resgate massivo, queimando ônibus, destruindo prédios e tomando inúmeros inocentes como reféns. Sob as ordens do presidente, Guzmán foi liberado e seus opositores certamente ficaram sabendo. Por isso, nas semanas seguintes, o México se viu assombrado por um incessante ataque de crimes violentos orquestrados por vários cartéis que, além de desafiarem governo, queriam para si o monopólio da violência.

Desde minha chegada ao México, eu soube que 2018 foi o ano com mais mortes registradas na nação, e que 2019 já havia superado essa estatística ao final de novembro. Minha estadia no México teve que terminar; e, para ser sincero, talvez eu já devesse ter me dado conta disso quando meu arrendador me alertou para nunca por a lata de lixo na calçada porque “já roubaram de imediato”.

Porém, eu não tinha a menor ideia de como seguir adiante... E aí, com um misto de curiosidade e desespero, me aproximei de um argentino que dirigia um canal famoso de sobrevivência no YouTube. “O quê? Você leu meu livro e se mudou pro México?”, me repreendeu na hora. Agora ele vivia na Espanha e eu não precisava de muito pra pegar um avião e me juntar a ele. O clima quente, o baixo custo de vida e um entorno notavelmente seguro, converteram a Espanha em um destino atrativo.

Minha viagem à Espanha me levou pela cidade de Nova Iorque e ao Clube Marshall de Xadrez (Marshall Chess Club). Ali joguei com uma renovada determinação de ganhar, buscando a linha mais nítida que pude encontrar em cada partida.


Aleksey Bashtavenko - Brian Pang 
Marshall Chess Club 2019
Grünfeld

 

1 d4 Nf6 2 c4 g6 3 Nc3 d5 4 cxd5 Nxd5 5 e4 Nxc3 6 bxc3 Bg7 7 Nf3 c5 8 Rb1
O-O 9 Be2 Qa5 10 O-O Qxa2 11 Bg5 Qe6 12 e5 f6 13 Bf4 fxe5 14 Bxe5 Nd7
15 Ng5 Qf5 16 Bc4+ Kh8 17 Bxg7+ Kxg7 18 Ne6+ Kh8 19 Nxf8 Nxf8 20 dxc5
Qxc5 21 Qd4+ Qxd4 22 cxd4 a6 23 Rfe1 e6 24 Rb6 Kg7 25 d5 exd5 26 Re7+
Kh6 27 Bxd5 Nd7 28 Rb4 Kg5 29 h4+ Kh6 30 Be6 Nc5 31 Bg8 g5 32 Rb6+
Kh5 33 Rxh7+ Kg4 34 Rb4+ Kf5 35 Rh5 Nd3 36 Bh7+ Ke5 37 Bxd3 Kf6 38
Rb6+ Kg7 39 Rh7+ Kg8 40 Rbh6 b5 41 Be4 Rb8 42 Bd5+ Kf8 43 Rf7+ 1-0

Cheguei a Málaga no meado de janeiro e me enturmei no clube de xadrez local. Mal sabia eu que teria poucas semanas para desfrutar do que a cidade tinha a oferecer: em dois meses, a Organização Mundial da Saúde declararia o estado de pandemia.

 

  

Diego Bartolomeo Ruiz Gaspar - Aleksey Bashtavenko 
Malaga 2020
Sicilian

 

1 e4 c5 2 b4 cxb4 3 a3 b3 4 cxb3 d6 5 Bb2 Nf6 6 Nc3 g6 7 d4 Bg7 8 d5 O-O

9 Nf3 Nxe4 10 Rc1 Nxc3 11 Bxc3 Bh6 12 Rc2 Bf5 13 Qd4 f6 14 Bd3 Bxd3

15 Qxd3 Nd7 16 b4 Ne5 17 Nxe5 fxe5 18 O-O Qd7 19 Bd2 Bg7 20 f4 Rac8

21 Rxc8 Rxc8 22 f5 gxf5 23 Rxf5 Qa4 24 h3 Qc2 25 Qxc2 Rxc2 26 Bg5 Bf8

27 Be3 Rc3 28 Bxa7 Rxa3 29 Rg5+ Bg7 30 Bb6 Kf7 31 Rg4 Bf6 32 Rc4 0-1

32...Rd3 seguirá, eg 33 Rc7 Rxd5 34 Rxb7 Rb5


Aleksey Bashtavenko - Enrique Perez 
Malaga 2020
Blackmar Diemer

1 d4 d5 2 e4 dxe4 3 Nc3 Bf5 4 f3 exf3 5 Nxf3 -Nc6-6 B-b5 -Bd7-7 O--O-e6 8-d5 exd5 9 Nxd5 Bc5+ 10 Kh1 Nge7 11 Ng5 Ne5 12 Qh5 Bxb5 (no diagram abaixo), logo 13 Ne6! g6 14 Nf6mate 1-0


O jogo começou às 21h30, para que pudesse ser acomodado ao horário da tradicional siesta espanhola. Para meu alívio, os jogos terminaram bem a tempo de pegar o último trem das 23h30. Por fim, encontrei uma explicação plausível para as polêmicas amargas nas quais eu, o capitão de equipes da Liga de Xadrez DC, estava envolvido. Aqui parecia que ninguém tinha tempo ou interesse para escrever uma crítica inútil de 27 páginas enchendo a paciência do diretor do torneio sobre uma decisão tomada meses antes.

Porém, na medida em que fui apreciando pouco a pouco o ritmo lento da vida do meu país adotivo, também me dei conta de que havia espaço para um otimismo cauteloso, em caso de necessidade.

“Pelo bem do bom xadrez, que é a única coisa com a qual deveríamos nos ocupar, devemos dizer a quem quer que seja, ou seja, aos dois oponentes em jogo, que já estamos fartos de rinhas, insultos e denúncias.”

Sei que houve alguma rixa entre os dois clubes de Sevilha e Málaga que, ao menos por agora, não se pode resolver devido às restrições da COVID19. Talvez algumas coisas nunca mudem e as disputas fervorosas constituam parte integral da cultura do xadrez. Deveríamos esperar algo a mais? Por natureza, o xadrez é uma atividade de constante conflito que tende a atrair gente encrenqueira e contenciosa. Refletindo sobre o porquê dos jogadores de xadrez fazerem tempestades em copos d’água, me lembro de como um homem sábio disse certa vez: um homem pode mudar seu rosto, seu lar, sua família e até o seu deus... Mas a única coisa que o homem não pode mudar é sua paixão.”

E quanto a mim e minha paixão? Bem, certamente eu não poderia dizer, com total certeza, que o xadrez é minha paixão. Não consegui o suficiente no xadrez para justificar tal afirmação. No entanto, uma passagem do livro “O Sol Também se Levanta” do autor Ernest Hemmingway me ressoa:Você é um expatriado! Você perdeu contato com o solo. Você se tornou fresco. Os falsos padrões europeus te arruinaram. Você bebe até a morte. Você se tornou obcecado por sexo. Você passa o tempo todo falando e não trabalha. Você é um expatriado, sabe? Você fica vagando pelos cafés.”.

Ao ler tudo isso, eu sei que voltar para a América não é mais uma opção válida. Não me importa que todos os voos diretos tenham sido cancelados, não voltaria ainda que me fosse dada a oportunidade. Acostumei-me a esse ritmo de vida sem uma competição desenfreada. Quase não sinto mais saudade da intensa atmosfera competitiva do clube de xadrez norte-americano. Se os “falsos padrões europeus” me “arruinaram”, que seja! Eu já não me importo mais.


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3 Comentários

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  1. Muito feliz por essa parceria! Esse artigo tem um valor imensurável pra nós. Muito obrigada, Rafa, pela força.

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    1. Obrigado nós que agradecemos a contribuição de vocês, muito feliz por essa parceria

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